As coisas que Dave dissera rodam em minha cabeça, impedindo-me de dormir. Quando finalmente consegui pegar no sono já passava das seis da manhã.
O despertador tocou pouco depois e eu me arrastei quase sem forças até o banheiro.
Minha cabeça doía demais e eu mal conseguia ficar com os olhos abertos. Tive de forçar a vista e me assustei ao ver meu reflexo no espelho, as olheiras estavam absurdamente profundas.
Com esforço tirei a roupa e joguei-me debaixo do chuveiro para acordar, mas não adiantou de nada. Estava com tanto sono que toda vez que fechava os olhos meu corpo pendia para o lado, ameaçando cair.
Levei quase uma vida para me vestir. Estava mais do que atrasada para o trabalho, mas não podia faltar.
Peguei meus óculos escuros e corri para o ponto de ônibus. Por sorte logo passou um. Acabei pegando no sono e passando do ponto. Acordei assustada e desci às pressas em frente a uma cafeteria. Eu precisava mesmo de algo que me desse energia. Quem sabe andar também ajudasse em alguma coisa, pensei. Acabei andando demais o que só me deixou mais mal-humorada ainda.
Entrei na loja empurrando a porta devagar, na esperança de não ser notada. Claro que foi em vão, já que aquele bendito sino tocava toda vez que a porta era aberta.
Bonnie logo se aproximou de mim.
- Bom dia.
- Bom dia. - Respondi indiferente.
- Está atrasada.
- Sei muito bem ver as horas. - Dirigi-me para trás do balcão.
- Não parece. - Ela cruzou os braços, imponente. - Se soubesse chegaria no horário. - Respirei fundo e me controlei para não ser grossa com ela.
- Essa foi a última vez. - Bonnie riu em deboche e apoiou os braços sobre o balcão.
- Quem você está querendo enganar? Essa não foi a primeira e nem vai ser a última. Só toma mais cuidado com o horário, está bem? - Suspirei e tirei os óculos.
Bonnie me olhou assustada e curiosa.
- Parece que alguém não dormiu esta noite.
Ignorei-a. Tudo que eu menos queria era Bonnie dando uma de amiguinha preocupada.
- O que vou fazer hoje?
- Você pode ficar aí no caixa, mas se eu fosse você colocava esses óculos de volta para não assustar os clientes. - Olhei-a com desprezo e joguei-me à cadeira. - O que aconteceu? - Não respondi e ela continuou. - Não acho justo eu ter que passar o resto do dia olhando para essa sua cara amarrada sem ao menos saber o motivo. - Continuei calada. - Eu posso ajudar... Ou pelo menos tentar.
- Não preciso de ajuda, só não consegui dormir.
- Tudo bem então. - Ela se afastou e foi limpar as prateleiras. Minutos depois ela voltou pedindo para que eu fosse comprar algo para comermos.
- Tá pensando que eu sou sua empregada? - Tenho que admitir, eu era um pé no saco quando estava com sono.
- Dá pra parar de ser grossa, garota? - Peguei o dinheiro no caixa e saí da loja batendo a porta. Comprei um pedaço de bolo e refrigerante e voltei para a loja.
Ao entrar vi Bonnie conversando com um garoto magricela e de cabelos pretos. Tudo que consegui ouvir da conversa foi "Mas é um show do Iron Maiden. Você precisa ir". Aproximei-me e entreguei a sacola para Bonnie.
- Quando é esse show? - Perguntei empolgada.
- Depois de amanhã. - O menino respondeu.
- Tá afim de ir? - Bonnie me olhou sorrindo.
- Não tenho dinheiro. - Dei de ombros e suspirei. Dinheiro eu tinha, mas as necessidades em primeiro lugar.
- Posso arrumar os ingressos pra vocês.
- O que vai querer em troca? - Bonnie perguntou desconfiada e ele, obviamente, se fez de desentendido.
- Como assim o que eu vou querer em troca? - Ela riu sarcástica.
- Eu te conheço, diz logo. - O menino cruzou os braços e disse:
- Bom, vocês sabem que não vai ser fácil conseguir os ingressos, afinal é um show do Maiden... Eu não queria ter que pedir nada, mas já que a Bonnie insistiu tanto... - Ele sorriu e continuou - Eu to devendo uns caras e não tenho como ir pegar umas coisas...
- Eu não vou pegar drogas pra ninguém. - O interrompi, rude.
- Você vai mesmo deixar essa alma caridosa morrer de abstinência?
- Abstinência não mata ninguém. - Sentei atrás do balcão e continuei. - E mesmo se matasse, não me importaria.
Eu era tão grossa com as pessoas que às vezes sentia pena delas.
Bonnie riu e perguntou:
- Aonde é esse tal lugar? - Ele a abraçou de lado e sorriu.
- Assim que se fala, boneca. - O menino se aproximou do balcão, anotou algo em um pedaço de papel e sorriu para mim. - Te vejo amanhã.
Ele estava certo de que eu iria aceitar.
Desviei o olhar e vi Scott entrar na loja, parar à minha frente e olhar sério para o amigo de Bonnie.
- Vocês duas não deviam estar trabalhando? Não pago ninguém pra ficar de papo com um drogado no horário de serviço... E Malcom, se não vai comprar nada dá o fora da minha loja, agora. Não quero você atrapalhando minhas meninas. - Falando desse jeito parecia até que ele era nosso cafetão.
- Sempre tão educado. - Ele respondeu sarcástico. - Já estou de saída. - Malcom olhou para Bonnie antes de sair, sorriu e disse: - É só você chegar lá e dizer meu nome. Amanhã passo aqui e trago os ingressos.
Bonnie se aproximou e olhou o papel sobre o balcão.
- Pelo menos é perto. - Olhei-a descrente.
- Você é louca de ir a um lugar desses.
Ela bufou, saturada.
- Será que você nunca feliz com nada, Delilah? É o Maiden! Maiden! Maiden!
- Eu sei quem são, não precisa ficar repetindo.
- Então quando fecharmos a loja nós passamos por lá.
- Nós? - Eu queria muito ir ao show, mas não sabia se queria tanto assim a ponto de aceitar ficar no meio de traficantes.
- Sim, nós. Eu e você.
Ela aumentou o som e foi atender um homem que estava no canto da loja.
- Maiden. Maiden. - Sussurrei tentando me encorajar.
Peguei o papel que estava sobre o balcão e suspirei. Sim, eu queria tanto ao ponto de ficar em meio a traficantes. Seria só por alguns minutos. Pegar e ir embora. Nada demais. Além disso, o show ajudaria a distrair minha cabeça.
O dia na loja foi corrido. Além do grande movimento na loja, volta e meia Scott me mandava ir comprar alguma coisa. Resumindo, me fez de escrava.
Já era oito da noite quando a loja esvaziou. Estávamos prontas para fechar quando Scott cismou que tínhamos que limpá-la.
- Mas temos que fazer umas coisas, Scott. Não podemos limpar amanhã? - Bonnie perguntou, nervosa.
- Não! Limpem agora. Tenho certeza de que o que quer que tenham que fazer pode esperar. - Ele saiu e nos deixou sozinhas.
- Não acredito nisso.
- Para de reclamar, Bonnie. - Eu já estava pegando a vassoura. - Vamos fazer isso logo. Quanto mais rápido fizermos, melhor.
Ela pôs Highway to Hell para tocar no último volume, o que facilitava um pouco as coisas. Terminamos de limpar já era quase onze da noite e eu estava exausta. Nós duas estávamos.
- Cadê o endereço? - Perguntou Bonnie, secando as mãos na calça.
- Você vai mesmo fazer isso?
- Eu não. Nós.
Entreguei a ela o pedaço de papel e ela analisou-o, ansiosa.
- Nem vamos precisar pegar ônibus. É praticamente aqui do lado.
- Nossa, que ótimo! - Meu sarcasmo uma hora iria irritá-la.
Bonnie me segurou pelo braço e me puxou para fora da loja. Fechamos tudo e fomos andando até o lugar. Ficava a duas ruas de lá. Era um bar escondido, com a entrada por uma apertada porta marrom.
Nos dirigimos até o balcão e um homem alto e gordo veio nos atender.
- O que desejam?
- Duas cervejas, por favor. - Disse Bonnie e o cara se afastou para buscá-las.
- Duas cervejas?
- A gente tem que disfarçar, né. - Se ela estava tentando disfarçar, tenho que dizer que estava agindo como uma idiota. Respirei fundo revirei os olhos.
Ele trouxe a cerveja e pôs a nossa frente. Dei um gole e o observei.
- Você pode me dizer onde posso comprar drogas neste muquifo? - Perguntei sem rodeios.
Bonnie abaixou a cabeça, como se não tivesse nada a ver com aquilo.
- Você deveria ter mais cuidado com as palavras que usa, menina.
- Desculpa, mas eu não perguntei quais seriam as palavras mais adequadas para se usar nesse lugar, agora você pode responder a minha pergunta? Porque se não puder eu não vou perder o meu tempo sentada aqui olhando pra sua cara. - Eu falava sem dar pausa alguma.
- Não dá atenção ao que ela fala. - Disse Bonnie, na tentativa de me salvar. Não que eu precisasse ser salva.
- Não, tá tudo bem. Gostei dela. - Ele sorria para mim de um jeito estranho. - Qual o seu nome, mesmo?
- Não te interessa. - O cara riu. - Ok, ok. Segunda porta a direita. Procure por Eddie, ele vai ter tudo que vocês precisam.
Peguei minha garrafa e levantei. Eu já estava andando em direção à porta, mas Bonnie ficou para pagar.
- Obrigada, viu.
- De nada... Foi um prazer conhecer sua amiga... e você. - Eu estava de costas, mas tinha certeza de que ela tinha olhado-o com raiva e o xingado mentalmente.
Ela se aproximou de mim e pôs a mão em meu ombro.
- Você é muito mal educada, Delilah.
- Se não gosta, não fala comigo.
Abri a porta e entrei sem pensar. O lugar fedia e me deixou tonta por alguns segundos. Tinham uns homens estranhos e algumas garotas, espalhados pela sala, bebendo e se drogando. E no final, bem debaixo da janela um grande sofá amarelo mostarda com um cara alto e barbudo jogado em cima dele. Ele nos olhou de cima à baixo com um sorriso ousado no rosto.
- Olha só o que temos por aqui hoje. Vieram chupar o pinto do papai?
Retribuí o olhar, porém com nojo.
- Não quero pegar lepra. - Os que estavam em volta riram, mas ele não pareceu achar graça alguma.
- Malcom nos pediu pra vir aqui pegar a encomenda - Bonnie se pronunciou.
Ele voltou a me olhar com aquela cara de quem mal podia esperar para me foder.
- Imaginei que ele fosse mandar alguém, mas não que fossem duas mulheres. Muito menos que uma delas me desse tanto tesão. Vocês não querem ficar?
- Só a encomenda, por favor. - Bonnie respondeu, ríspida.
- Ok, só as encomendas. - Ele sinalizou com as mãos e um das garotas nos entregou uma sacolinha com heroína. - Digam a ele que essa é de boa qualidade, e que é pra ele reduzir a dose se não quiser morrer de overdose. E já ia esquecendo, digam também que ele me deve quinhentos reais por isso.
Olhei incrédula para Bonnie, que agradeceu ao cara. Como alguém paga tanto por um mísero saquinho de heroína? E o mais importante, de onde ele tirava aquele dinheiro?
- Tchau, meninas. Espero vê-las de novo.
Ao sairmos do bar deixei a garrafa vazia em cima do balcão.
- Não acredito que ele pagou quinhentos reais por essa porcaria.
- Nem eu.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Quando virei-me para olhar para trás vi um carro idêntico ao do Mustaine estacionado do outro lado da rua.
- Não acredito nisso! - Exclamei nervosa.
- É... Eu também ainda não to acreditando que ele vai...
- Não to falando disso.
- Do que está falando, então? - Ela me olhava confusa. Não podia ser ele, quais as chances, certo? Resolvi deixar pra lá.
- Nada não. Vamos embora.
- Tá bom, então.
Voltamos a andar, mas um barulho de latas de lixo caindo me chamou atenção e eu parei imediatamente. Olhei para a Bonnie, preocupada.
- Mustaine. - Corri até o carro e a porta do motorista estava aberta, a chave na ignição.
- O que está acontecendo? - Gritou Bonnie e correu atrás de mim. - Delilah, o que tá acontecendo?
- É o carro do Mustaine.
- E daí? Vamos embora.
Eu estava torcendo para não ser nada demais, mas já esperava pelo o pior. Olhei em volta e vi as sombras de duas pessoas em um beco. Uma delas estava no chão e a outra em pé. Pareciam brigar.
Para, por favor. - Era a voz de Dave, tinha certeza que era. Não sabia se ia embora ou se ia ajudá-lo. Mas o que eu poderia fazer? Se alguém estava batendo nele não faria muito esforço para bater em mim também. Mas decidi ajudar mesmo assim.
- Delilah, vamos embora. Aqui é perigoso.
Ignorei-a e corri até o beco. Mustaine estava jogado no chão com o rosto sujo de sangue e a mão sobre a barriga enquanto o outro o chutava nas costas.
- Para! Para! - Gritei e corri para ficar entre os dois.
- É melhor você sair da minha frente, garota. Se não vai apanhar junto com ele.
Olhei para Dave e me deu tanta pena... Eu tinha que fazer alguma coisa. Pensar rápido.
- Ele está quase morrendo, não vale a pena matá-lo. Ele é inútil.
- Meu assunto não é com você. Sai da frente.
O homem me empurrou e levantou Dave pela camisa, preparando-se para socá-lo. Entrei em pânico gritei novamente:
- Não! Eu pago! Quanto você quer? Eu pago. Mas por favor, não bate mais nele.
- Eu mandei você ir embora, não mandei? Some! - Eu olhava desesperada para o Mustaine. Ele tentou falar, mas só saía sangue de sua boca.
Bonnie reagiu e me segurou pelo braço.
- Vamos, Delilah. Você ouviu. Vamos embora. - Não me mexi, simplismente não conseguia. - Vamos, Delilah. Ele já disse que não quer dinheiro. - Ela gritava comigo e tentava me puxar.
Dave levou mais um soco no estômago e caiu ao chão. Se ele não queria dinheiro, alguma coisa ele teria que querer. Pensei rápido e peguei a sacola da mão da Bonnie.
- O que você tá fazendo?
Joguei-o para o cara e ele o agarrou.
- Tem quinhentos reais de heroína aí dentro. É da boa. Leva isso como garantia de que ele vai te pagar. Olha só como ele tá, se você continuar batendo ele vai morrer. E você vai ficar sem dinheiro.
Ele riu e levantou Dave pela gola da camisa. Segurei no braço do homem e implorei:
- Por favor, não bate mais nele. Por favor.
- Parece que pelo menos alguém ainda tem piedade de você. Considere nossa divida paga.
Ele o soltou e foi embora examinando a heroína na sacola. Eu corri para segurar Dave, mas ele era pesado demais. Principalmente quando não consegue se aguentar em pé. Caí de joelhos com a cabeça dele ao meu colo.
Bonnie estava desesperada, com as mãos na cabeça.
- Eu não acredito que você fez isso, Delilah.
- Eu vou pagar.
- Não importa se você vai pagar ou não. Você ouviu o que ele disse? Você ferrou a gente, Delilah. Tudo por causa desse fracassado.
Por mais que ela tivesse razão não tinha direito de falar assim dele.
- Não o chama assim. Você não o conhece. E se não for me ajudar pode ir embora.
- Eu não acredito nisso. - Ela se virou para ir embora.
Passei a mão pelos cabelos dele e observei cuidadosamente seu rosto. Meu coração apertou e eu não sabia o que fazer.
- Vamos lá. Você tem que pelo menos conseguir ficar em pé. - Levantei-o devagar e ele cuspiu sangue. - Droga.
Bonnie voltou para perto de nós e segurou-o pelo outro braço.
- Ele precisa ir a um hospital. Urgente.
- Obrigada. - Disse quase em sussurro.
O levamos até o carro e entrei no banco de trás com ele. Bonnie ficou no banco do motorista. Encostei-o ao banco com a cabeça inclinada para cima, tirei minha blusa e passei por seu rosto. Ele gemeu de dor e meu coração apertou novamente. Passei levemente a mão por seu rosto.
- Vai ficar tudo bem. Vamos te levar para o hospital. - Ele pôs a mão por cima da minha e a acariciou. Era sua forma de me agradecer.
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